O que falta para o Brasil unificar os dados de saúde da população?

Mesmo com tecnologia disponível, país ainda enfrenta obstáculos para centralizar as informações de saúde da população

Dados de saúde – Imagine chegar a uma consulta médica e o profissional ter, com sua permissão, acesso completo ao seu histórico de saúde: cirurgias realizadas, exames, uso de medicamentos, procedimentos e diagnósticos — independentemente da unidade ou rede onde esses dados foram registrados.

Embora o Brasil já disponha de tecnologia suficiente para integrar essas informações, a criação de um sistema nacional de prontuário eletrônico unificado ainda parece distante. Segundo Andrey Abreu, diretor corporativo de tecnologia da MV — empresa brasileira especializada em soluções digitais para o setor da saúde —, o desafio não está na infraestrutura, mas sim em barreiras políticas, culturais e na resistência dos próprios agentes do sistema (como SUS, clínicas, laboratórios, hospitais e médicos).

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Desde janeiro de 2023, o Ministério da Saúde conta com a Secretaria de Informação e Saúde Digital, responsável por liderar a transformação digital no setor com foco em ampliar o acesso, garantir a continuidade do cuidado e promover a integralidade da assistência.

Em entrevista ao UOL, Andrey Abreu detalha porque o Brasil ainda está longe de alcançar a chamada interoperabilidade na saúde e comenta o papel crescente da inteligência artificial no aprimoramento de diagnósticos e atendimentos nos próximos anos.

A interoperabilidade se refere à capacidade de diferentes sistemas e instituições de saúde compartilharem informações de maneira segura, padronizada e eficiente, garantindo que o histórico do paciente esteja disponível em qualquer ponto da rede quando necessário.

UOL: Na sua visão, é realmente possível termos um prontuário eletrônico único no Brasil? Ou ainda é uma ideia utópica?

Andrey Abreu: Não é utopia, não. O prontuário eletrônico unificado já existe em alguns lugares, inclusive aqui no Brasil, mas ainda de forma muito pontual. Quando a gente fala em digitalização da saúde, estamos falando em migrar todo o ecossistema –paciente, médicos, hospitais, operadoras– para um ambiente verdadeiramente digital, onde a informação seja acessada e compartilhada de forma segura e eficiente. Países como Estônia, Dinamarca e Israel estão muito avançados nisso. Israel, por exemplo, tem saúde digital há mais de 30 anos.

E o que seria, exatamente, esse prontuário eletrônico unificado?

Seria uma plataforma única, que armazena toda a jornada clínica do paciente, consultas, exames, internações, medicamentos, alergias, histórico familiar etc., e que pudesse ser acessada em qualquer lugar, por qualquer profissional autorizado, seja em um consultório, hospital ou laboratório. Hoje, o que acontece no Brasil é o contrário: a informação está fragmentada. O paciente tem pedaços de seus dados espalhados entre hospitais, laboratórios e convênios.

Mesmo com a digitalização, esses dados ainda não se comunicam entre si, certo?

Exato. Hoje, mesmo os dados que são digitalizados continuam presos dentro dos sistemas de cada instituição. O hospital tem um pedaço, o consultório tem outro, o laboratório mais um.

Já existe algum exemplo funcional desse modelo no Brasil?

Sim. Um bom exemplo é o da Unimed Sorocaba. Lá, o paciente tem uma jornada 100% digital. Ele passa em consulta no consultório, faz exames, é internado se necessário, recebe a receita digital e ainda pode comprar o medicamento pela farmácia ou pelo app –tudo sem papel. Toda essa jornada fica registrada e acessível em tempo real para os profissionais de saúde. E o paciente também tem acesso pelo aplicativo. Se houver uma nova internação, o histórico clínico estará todo lá, sem necessidade de repetir exames ou contar tudo de novo.

Em Goiás, há uma rede de 34 hospitais estaduais conectados por uma solução da MV. Se você faz um exame em um hospital e depois é atendido em outro da rede, o novo médico já consegue ver aquele resultado. Em Belo Horizonte, 400 unidades de saúde já estão 100% integradas também. Mas ainda são exemplos isolados. O grande desafio é fazer isso acontecer de forma nacional, tanto no setor público quanto no privado.

Quais são os principais entraves para essa integração em larga escala?

São muitos. O primeiro é a conectividade: o Brasil é um país continental, com regiões ainda sem internet adequada. O segundo é a enorme variabilidade de instituições –temos mais de 5.000 hospitais no Brasil, entre públicos, privados, filantrópicos, grandes e pequenos, com níveis diferentes de maturidade digital.

E como o Open Health entra nessa discussão?

O Open Health nasce justamente dessa necessidade de interoperabilidade. É inspirado no Open Banking, onde um banco pode acessar dados de outro, desde que autorizado pelo cliente. Na saúde, a lógica é a mesma: você pode estar na operadora A e fazer exames no laboratório B, e o hospital C conseguir acessar tudo isso, mas sempre com sua autorização. Tecnicamente, isso já é possível. O que falta é um modelo regulatório mais robusto, que obrigue todos os sistemas a seguirem um padrão e a se integrarem.

Então, pelo que entendi, o que está impedindo um prontuário único no Brasil é mais uma questão política e de adesão do que de viabilidade técnica?

Exatamente. A tecnologia existe. Mas, como exemplo, o governo criou uma lei para a vacinação na covid e nem todo mundo se vacinou. O mesmo vale aqui: só criar uma norma não basta. A adesão dos players da saúde é fundamental. E, mais do que isso, o paciente também tem um papel crucial nesse processo.

Porque depende da autorização dele, certo?

Isso mesmo. A LGPD deixa claro que os dados são do paciente. Então, se o paciente disser “quero compartilhar meu histórico com esse médico ou hospital”, o sistema precisa estar preparado para isso. O movimento vem das duas pontas: da tecnologia e do desejo do cidadão por um cuidado melhor e mais eficiente.

Mas nem dentro do SUS isso está resolvido ainda, né?

Nem dentro do SUS. É muito comum, por exemplo, você precisar apresentar seu cartão de vacinação e ele não estar registrado em nenhum sistema. Se ninguém alimenta o sistema, se não existe um protocolo bem definido, a informação se perde.

Além disso, você comentou sobre a segurança dos prontuários. O que é necessário garantir nesse aspecto?

Segurança é essencial. Existe no Brasil uma certificação da SBIS (Sociedade Brasileira de Informática em Saúde) que valida a confiabilidade de um prontuário eletrônico. Isso garante, por exemplo, que o sistema alertará se o paciente está recebendo uma dose errada de remédio, se há interação entre medicamentos ou se há alergias registradas. São travas que salvam vidas.

Aí entramos na inteligência artificial, né? Que papel ela pode ter nessa transformação?

Um papel enorme. Mas é importante esclarecer que toda IA que faz sugestão de diagnóstico ou tratamento precisa ser regulamentada pela Anvisa. Aqui na MV levamos três anos para obter o registro da nossa IA, chamada MaVi¹. Lançamos só após essa aprovação. A MaVi é uma assistente para o médico, não o substitui.

E qual é o impacto prático disso?

Por exemplo, durante a pandemia, conseguimos com IA identificar com 97% de acurácia se uma pessoa tinha covid com base em imagem pulmonar. Hoje, conseguimos apontar com mais de 90% de precisão se um tumor é maligno ou benigno. A IA não substitui o médico, mas amplia sua capacidade de análise. É o que chamamos de modelo centauro: humano + tecnologia.

E como a IA está sendo usada nos prontuários eletrônicos?

Hoje, usamos agentes de IA que acompanham a jornada do paciente. Eles podem lembrar o horário de um medicamento ou ajudar o médico durante uma cirurgia, como uma espécie de “Alexa médica”. Temos, por exemplo, um sistema em que o cirurgião vai falando o que está fazendo, e a IA escreve o laudo automaticamente, alerta se faltou algum procedimento e verifica possíveis inconsistências. A ideia é que a IA atue como uma assistente, sempre respeitando a LGPD.

Sobre IA, é importante dizer que se a base de dados for ruim, ela gera resultados ruins. Por isso, é fundamental termos dados de qualidade, registrados corretamente, com protocolos claros. Não adianta alimentar uma IA com informações de fora do contexto brasileiro. Precisamos de uma base nacional, segura e estruturada.

Diante disso tudo, você acredita que o prontuário eletrônico, como conhecemos hoje, vai deixar de existir?

Sim. Acredito que, em breve, o prontuário será completamente integrado à experiência de uso. O médico não vai mais digitar ou preencher telas. Ele vai conversar, e a IA vai registrar, organizar e sugerir. A barreira da tecnologia vai sumir. Assim como o WhatsApp democratizou a comunicação, os agentes de IA vão democratizar o acesso à saúde digital.

Quais são, então, as grandes apostas da MV para os próximos anos?

O foco principal é a interoperabilidade. Estamos investindo muito para conectar sistemas, integrar dados e construir uma jornada do paciente contínua. Lançamos recentemente, inclusive em Las Vegas, o conceito de saúde conectada, e estamos implementando isso em grandes hospitais como o Real Hospital Português, em Pernambuco. Também temos projetos aprovados com a Finep para desenvolver um modelo de linguagem natural de IA voltado à saúde em português do Brasil –algo que ainda não existe no mundo. Outro desafio é o custo da IA, que ainda é muito alto. Precisamos torná-la acessível.

Já estamos presentes em oito países da América Latina e em Angola. E, em breve, entraremos nos EUA. Mas o nosso foco, hoje, ainda é o Brasil —porque aqui há muito o que fazer. O SUS, por exemplo, é um dos sistemas públicos mais robustos do mundo. O que falta é conectividade, interoperabilidade e vontade política. O SUS pode, sim, ser uma referência global em saúde digital.

(Com informações de Uol)
(Foto: Reprodução/Freepik/KSerg)

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